Na despedida de Flávio Dino do Ministério da Justiça, Lula reconhece as dificuldades para combater a
“Jogo pesado” contra o crime
O agora ex-ministro da Justiça Flávio Dino se despediu do cargo, ontem, com um balanço de ações desenvolvidas pelo governo federal na área da segurança pública em 2023. Ele destacou a queda de 4,17% (em relação a 2022) na quantidade de crimes violentos letais intencionais (CVLI) como “resultado muito expressivo”.
“Nós voltamos aos números do fim do segundo governo do presidente Lula. Tivemos o menor número de crimes violentos letais intencionais desde 2010”, afirmou Dino. No ano passado, foram registrados 40,4 mil homicídios em todo o país, contra 42,1 mil em 2022.
O Ministério da Justiça e da Segurança Pública (MJSP) passa a ser comandado, a partir de hoje, pelo ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski. O maior desafio da nova gestão está, justamente, na área de segurança pública, que tem como prioridades o combate ao crime organizado e a redução dos índices de violência. Dino desejou sucesso ao novo ministro.
“Tenho certeza de que, com a gestão do ministro Lewandowski e sua equipe, esse número (de mortes por crimes violentos) vai cair ainda mais”, disse Dino, que vai ocupar, a partir do dia 22, uma cadeira de ministro do STF. “É claro que 40 mil (mortos) ainda é um patamar muito alto, muito além do que o Brasil deseja, mas lembremos: o importante é vermos que os números de 2023 sempre estiveram abaixo dos números de 2022. Ou seja, tirando o mês de janeiro de 2023, em todos os demais meses nós tivemos números melhores do que os números do ano pretérito, firmando, ao meu ver, um caminho virtuoso que precisamos perseverar para termos resultados cada vez melhores”, complementou.
Dino também destacou as iniciativas de descapitalização do crime organizado e a redução do número de armas de fogo nas mãos de civis que, segundo ele, contribuíram para a redução do número de mortes violentas intencionais. “Quero frisar a chamada descapitalização, porque isso é combate ao crime organizado de verdade”, declarou ele.
Segundo os dados apresentados, em 2023 foram apreendidos pelas polícias Federal (PF) e Rodoviária Federal (PRF) mais de R$ 7 bilhões em imóveis, veículos, dinheiro em espécie, drogas e outros bens e valores do narcotráfico. “Combate ao crime organizado não é sair dando tiro a esmo, não é invadir bairros populares e fuzilar idosos, crianças e mulheres. Isso é alimentar o ódio, não é eficiente”.
“Por isso, aplicamos uma política de inteligência policial, tecnologia, descapitalização para enfrentar as facções criminosas naquilo que é vital, que é o domínio do dinheiro, a destinação dos bens e a comunicação desses escritórios do crime que há no sistema penitenciário, alimentando o fenômeno das duas principais organizações criminosas do Brasil, que nasceram no ventre do sistema penitenciário. Essa é uma questão essencial para o nosso país”, avaliou Dino.
Em 2023, mais de 40 mil aparelhos celulares foram apreendidos em presídios. O número de apreensões de armas ilegais aumentou 25,5%, no mesmo tempo em que foi registrada redução de 79% no registro de novas armas.
O próximo magistrado do STF também ressaltou a atuação da PF e PRF no combate a assaltos a bancos. Segundo os dados, roubos a instituições financeiras tiveram uma queda de 40,91%. “Isso é muito significativo porque, em larga medida, alimenta o chamado ‘novo cangaço’, que se lastreia fortemente em cerco a cidades e roubos a bancos. Em 2023, tivemos uma redução da força do ‘novo cangaço’.”
“Multinacional”
O evento, no Palácio do Planalto, contou com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), do ministro Ricardo Lewandowski, do ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, e do ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social, Paulo Pimenta. Após o encerramento da entrevista coletiva de imprensa, o chefe do Executivo falou sobre o que espera para este ano em relação ao combate às organizações criminosas, tema que fez questão de destacar.
Lula prometeu que o governo vai atuar com rigor contra o que chamou de “indústria multinacional do crime organizado”. Ele disse que, com Lewandowski à frente do ministério, vai buscar formas de “jogar pesado” contra as organizações criminosas, e cobrou iniciativas de “países ricos” no sentido de atender aos usuários de drogas com políticas públicas que desestimulem o consumo. O novo ministro da Justiça ficou em silêncio durante todo o evento, mas, apesar de não ter dado declarações públicas, fez um gesto de consentimento com a cabeça quando foi citado pelo presidente Lula.
“O crime organizado, hoje, não é uma coisa fácil de combater porque virou uma grande indústria multinacional, maior do que a General Motors, a Volkswagen, a Petrobras. É uma coisa muito poderosa”, comparou o presidente.
Lula ressaltou que uma das dificuldades para enfrentar as facções está no fato de que essas organizações à margem da lei se institucionalizaram e estão infiltradas nos mais diversos campos da sociedade. “O crime organizado está na imprensa, na política, no Judiciário, no futebol, nos empresários, eles estão em tudo quanto é lugar do planeta Terra”, pontuou.
“É uma coisa tão difícil que, muitas vezes, um país rico, como os Estados Unidos, acha que combater a droga será resolvida colocando base militar na Amazônia ou na Colômbia. O problema não é a droga, é saber como um país rico vai cuidar dos usuários”, completou.
Lula ressaltou que, diferentemente dos usuários de crack, que andam como “zumbis” por causa dos efeitos da droga, quem consome cocaína “lida com milhões”, ou seja, fortalece uma rede bem estruturada de narcotraficantes que movimenta muito dinheiro no mundo todo.
O presidente reconhece que o governo ainda não sabe como enfrentar esse problema, mas uma das melhores alternativas, para ele, é investir em inteligência “porque pegar essa gente é sempre mais complicado”. Lula também defendeu a necessidade de “humanizar o pequeno crime, cometido por pessoas mais humildes” e, por outro lado, adotar medidas mais duras contra o crime organizado.
Corrupção
Na solenidade em que se despediu do cargo de ministro da Justiça, Flávio Dino criticou o relatório que aponta piora do Brasil no ranking que avalia a percepção popular sobre corrupção no mundo. O estudo, divulgado na terça-feira pela Transparência Internacional, mostra que o país perdeu dois pontos e caiu 10 posições no Índice de Percepção de Corrupção (IPC) de 2023. O ministro disse ter recebido com “espanto” o documento, o qual chamou de “atípico” e “anômalo”.
“Há afirmações bastante exóticas nesse estudo. Eu demonstro aqui que a PF continua firmemente, todos os dias, combatendo a corrupção. O que mudou é que pusemos fim à política de espetacularização do combate à corrupção, que é uma forma de corrupção”, declarou Dino.
O ministro apresentou dados do trabalho realizado pela Polícia Federal para combater a corrupção em 2023. De acordo com as informações divulgadas por Dino, a PF deflagrou 227 operações, efetuou 147 prisões, cumpriu 2.091 mandados de busca e apreensão e apreendeu R$ 897 milhões em bens e valores. “Quem usa o combate à corrupção como bandeira política é tão corrupto quanto o corrupto. Essa foi a mudança da espetacularização que nós fizemos, mas as operações aí estão”.
Críticas e elogios
Descapitalização das quadrilhas e investimentos nas forças de segurança são as principais armas de combate ao crime organizado, destacam especialistas ouvidos pelo Correio. Analista criminal e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Guaracy Mingardi aponta ainda que o que funciona, no médio prazo, contra o crime profissional é a investigação.
“(É preciso) reequipar as polícias civis e dar prioridade a determinados crimes. Não é possível priorizar tudo. Por exemplo: o crime da moda é roubo e furto de celular. Precisa combater a receptação fiduciária. Precisa ter ações municipais, estaduais e federais”, explicou. Ele disse que a gestão de Flávio Dino no Ministério da Justiça teve dois pontos altos: a repressão ao golpe de Estado e a restrição ao armamento.
“Não sou defensor do punitivismo, porque o Brasil tem a terceira maior população carcerária do planeta, mais da metade são pessoas pobres, negras, de baixa escolaridade, da periferia, o que já mostra que a desigualdade social é um dos indutores da criminalidade”, destacou Aiala Couto, também pesquisador do fórum.
“É um crime que transcende a lógica periférica e chega a instituições políticas, contribui para a corrupção, lavagem de dinheiro, os mais diversos tipos de tráfico. É necessário fazer com que a legislação seja cumprida para todos, independentemente de classe social, raça e cor, além de investir em políticas públicas para impedir que o crime organizado alcance a juventude e fortaleça sua rede”, emendou.
Sobre a gestão de Flávio Dino, considera que teve “destaque significativo”, mas emperrou na dificuldade de instituir uma pasta específica para a segurança pública que pudesse dialogar melhor com as polícias estaduais, com a perspectiva de elaborar projetos integrados.
O cientista político Antônio Testa, que estuda o avanço do crime organizado no Brasil, criticou a ação tardia do governo no combate ao garimpo ilegal. “Além disso, não apresentou nenhum indicador de que enfrentou para valer o PCC, o Comando Vermelho, a Família do Norte e dezenas de outras facções que levam o terror à população. Nada fez contra o contrabando ilegal de ouro e outros metais preciosos nem implementou uma política de ação integrada entre União, estados e municípios”, criticou o especialista.
Berlinque Cantelmo, advogado especializado em ciências criminais, destaca a importância de atingir as fontes de financiamento do crime. “A descapitalização pode ser alcançada por meio de ações legais, como apreensão de ativos, congelamento de contas bancárias, combate à lavagem de dinheiro e confisco de propriedades obtidas ilicitamente”, explicou.
Além disso, esforços para interromper atividades econômicas ilegais, como o tráfico de drogas, também contribuem para minar as finanças dessas organizações. A cooperação internacional e o compartilhamento de informações desempenham um papel crucial nesse processo. (IS).