Morto aos 84 anos, Armando Freitas Filho deixa uma legião de admiradores. Tinha como referência Drummond e Bandeira
Armando Freitas Filho: seis décadas do ofício de um poeta
Morreu, ontem, aos 84 anos, o poeta carioca Armando Freitas Filho, um dos mais importantes da literatura brasileira moderna. Segundo a editora Companhia das Letras, que publicava os livros de Armando, o poeta morreu em razão de "complicações de saúde". Ele é autor, entre outros, de À mão livre (1979), 3x4 (1985, vencedor do prêmio Jabuti), Rol (2016, vencedor do prêmio Rio de Literatura e APCA de 2016) e Arremate (2020).
Armando é autor de uma poesia que extrai a beleza do amor, das cenas cotidianas, do erotismo, da morte e do corpo a corpo com a vida. Carioca da gema, torcedor do Fluminense, antigo peladeiro, era, no entanto, grave e dramático como se fosse um russo. "Escrevo a minha vida./E o que sai do meu sonho/ou do meu punho/vem pela mesma veia/em dicção urgente."
Para o poeta, crítico e professor de literatura Ítalo Moriconi, Armando é um dos grandes poetas brasileiros do século 20 e, mais precisamente, um dos cinco maiores da década de 1970 em diante. Sintetiza a herança que recebeu do modernismo maduro, principalmente de Carlos Drummond de Andrade, em diálogo com o movimento Práxis e com a geração marginal da década de 1970, para construir uma poesia singular, em que está em cena não mais o homem de classe média, mas, sim, um homem conturbado por contradições.
"Armando construiu um lugar só dele pelo fôlego de poeta, com uma tenacidade que atravessou seis décadas. Ele dialogou com vários movimentos, como companheiro de viagem. Existem afinidades com a temática erótica e sentimental da poesia marginal, mas de uma maneira muito original. A linguagem poética do Armando é a consolidação de todas as possibilidades do modernismo. O coloquialismo chega a um alto artesanato e a uma alta voltagem", comenta Moriconi.
O amigo de Armando lembra que o poeta era uma figura provocadora, mas sempre afetuosa e estimulante: "Não era bonzinho, não tinha papas na língua, diálogo com ele era muito bom. Representava a memória da Ana Cristina César, com quem teve um relacionamento pessoal e poético. Ele conhecia os bastidores da poesia marginal. Então, para a nossa geração, isso era muito importante", descreve Moriconi.
A morte da amiga e namorada Ana Cristina César, ao cair do vigésimo andar de um edifício no Rio de Janeiro, foi um acontecimento traumático na vida de Armando. Tinha a impressão de que ela nunca havia parado de cair e escreveu: "Você não para de cair/água de mina/fugindo por entre os dedos de todos".
O poeta Eucanaã Ferraz destaca que antes de qualquer coisa, Armando era um poeta com todas as letras. Mesmo os amigos eram, acima de tudo, amigos do poeta: "Disse-me mais de uma vez: 'Eu procuro a musa, não espero por ela.' Era um homem à procura das palavras". Eucanaã enfatiza outro aspecto marcante na postura de Armando Freitas: como poucos, dedicava-se a ouvir outros poetas. "Acompanhava os jovens autores, entusiasmava-se, comentava, sabia que fazíamos parte de uma grande e estranha família. E era muito engraçado em sua gravidade. Que delícia ouvi-lo dizer coisas só suas, como 'Drummond é Deus'".
O escritor e jornalista Luis Turiba entrou em contato com Armando por meio da coletânea 26 Poetas Hoje, que reuniu a produção da chamada geração marginal da década de 1970. Turiba situa a poesia de Armando entre a de 1945, o alto modernismo de Carlos Drummond e o despojamento da geração mimeográfo: "Ele pertence a esse time dos poetas de fino trato. O Armando e o Chico Alvim dialogavam com os clássicos do modernismo. Drummond foi uma luz para todos nós, mas, para eles, acho que foi mais. Era muito discreto, foi criado na Urca, um bairro onde as pessoas costumam se isolar", analisa.
Simples e delicado
O poeta e professor de literatura da Universidade de Brasília Alexandre Pilati situa Armando na condição de elo lírico entre Manuel Bandeira, Drummond, Ana Cristina César e Antonio Candido. E, para ele, a poesia de Armando se distingue pela beleza que se exprime a partir da simplicidade e da delicadeza. "Ao lê-la, temos a impressão de conversa ao pé do ouvido com um amigo de longa data. Um amigo gentil, que nos ampara, acolhe e ensina o nosso olhar a ver no humilde, no miúdo, o espanto da vida. Isso, muitas vezes, com um humor que humaniza o nosso desamparo, nossa ignorância, nossos erros. É belo que o país possa acolhê-lo entre o que há de melhor em nossa literatura", afirma.
Os dois mestres iniciais da poesia para Armando foram Manuel Bandeira e Drummond, quando o aspirante a poeta tinha 16 anos. Mas não vieram em forma de livro; chegaram com o disco presenteado pelo pai. No lado A, Bandeira dizia seus poemas com voz pigarreante e, no lado B, Drummond fazia o mesmo com voz datilográfica: "Poesia é para mim o destino da minha vida e o meu mentor inicial foi o poeta de Pasárgada", escreveu Armando em depoimento. "Melhor: ele me ensinou que há uma Pásargada em cada um de nós; o que nos cabe é descobri-la, apaixonadamente".
Bandeira já era considerado um grande mestre, enquanto Drummond era tido como um poeta encrencado. Armando entendia que a grande façanha intelectual de sua vida foi ter passado do lado A para o lado B: "Nunca terminei de ler Drummond, é uma tarefa infinita", disse, em entrevista ao Correio. E houve um segundo encontro com Manuel Bandeira. O pai de Armando pediu uma avaliação do primeiro livro do filho e Bandeira sentenciou: "Interessantíssimo".
No entanto, mais do que mestres ou múmias acadêmicas, Armando considerava Carlos Drummond, Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto inimigos poderosos com quem se confrontava para forjar a própria voz. Ele escreveu inúmeros poemas para expressar, a um só tempo, a admiração e a luta pela singularidade. É o que está registrado no poema "dna cda", incluído no último livro, Arremate, em que coloca em jogo o apreço e o embate com Carlos Drummond de Andrade: "Não é possível/escapar de sua pedrada/e esconder a ferida incurável/do estigma./Nem paga a pena/ser genérico ou placebo./Mais vale se embaralhar com ele/e conseguir ficar de pé —/descartar-se —ensebado e livre/sendo só eu sem o seu eco."
"Medalha no seu peito/e no meu o coração", escreveu Armando, desconfiado das homenagens oficiais. No entanto, ele foi reverenciado em vida. Ganhou o Prêmio Jabuti, o Prêmio Alphonsus Guimarães da Biblioteca Nacional, recebeu carta elogiosa do crítico Antonio Candido e tornou-se personagem do documentário de Walter Carvalho, produzido em 2016. "Prêmios, consagrações e respeito são duvidosos por natureza", disse Armando, em entrevista. "Há sempre aqueles que não me premiam, não me consagram, não me respeitam. Portanto, o sentimento que tenho, ao sentar para escrever, é tentar fazer com que eles me respeitem, somente".
Correspondente
Poeta do corpo a corpo com a vida, Armando parecia um correspondente de guerra no Rio de Janeiro, que amava, mas definia como uma cidade assaltante, capaz de, em segundos, invadir a janela com a beleza ou o terror. No poema Rio, 30 de junho de 2017, para Arthur e sua mãe, ele evoca o incidente trágico de uma mãe atingida por uma bala perdida: "Nenhuma bala é perdida./Todas alcançam o alvo/mais imprevisto — útero/escudo, esconderijo escuro/onde uma criança cresce/e é atingida através da mãe/e a salva, desviando o tiro/com o início da sua vida/que resiste ainda por alguns dias".
Apaixonado pelo Rio, Armando pensou em morar em Brasília, depois de ler uma famosa crônica de Clarice Lispector. "Como não morador, a minha sensação brasílica foi guiada pela mão dessa deusa Clarice Lispector. Quando li a crônica dela sobre Brasília, fiquei comovido. Começa com a magnífica frase: 'Brasília é construída na linha do horizonte'", disse o poeta, em entrevista ao Correio.
Armando não esperava a inspiração das musas para escrever poesia. Sabia o que era expiração, enfrentava o desafio, explorava o tema, fazia descobertas e o poema acontecia: "A única coisa que sei fazer mais ou menos é escrever", afirmou em entrevista ao Correio: "Por isso, publico um livro a cada três anos".
Nos últimos tempos, Armando preferia reler Drummond, Ferreira Gullar, João Cabral de Melo Neto e Bandeira a ler os jornais: "Basta abrir o jornal ou ouvir o rádio para saber que está acontecendo algo ruim. Eu me sinto assim, muito bem acompanhado por essa turma. Para mim, eles não morreram. Para mim, eles estão todos vivos." Considerava que ler Drummond era como ler a Bíblia, sempre encontrava alguma palavra salvadora no poeta de Itabira. Ao mesmo tempo, Armando gostava de ler a produção das novas gerações, fazia observações críticas e estimulava os jovens.
Ao fazer 80 anos, Armando disse, ao Correio, que era como fazer 100 ou, de maneira figurativa, ficasse na ponta do trampolim quando não tem mais nada, água, piscina ou mar. "Escrever é a maneira de me manter vivo. O que eu quero fazer daqui para frente é escrever para me manter vivo, para me manter equilibrado na ponta do trampolim." Armando deixa a mulher Cristina Barros, os filhos Carlos e Maria. E também o livro inédito Respiro. Cristina disse: "Fica a poesia dele".