Em resposta a um pedido de informação do Supremo Tribunal Federal (STF), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva defendeu que a violência doméstica comprovada deve impedir a repatriação de crianças tiradas de outros países sem autorização do outro genitor e levadas ao Brasil.
A manifestação da Presidência, a partir de relatório da Advocacia-Geral da União (AGU), foi encaminhada ao STF neste mês, após solicitação do ministro Luís Roberto Barroso, relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade 7686, proposta pelo PSOL e relacionada à chamada subtração internacional de crianças.
A ação pede que em casos de “suspeita ou evidência de violência doméstica em país estrangeiro” a criança não seja repatriada ao “lar do agressor” no país onde vivia antes de ser levada ao Brasil.
A posição do governo brasileiro defende o pedido em parte. Diz que é necessária “comprovação de violência doméstica cometida contra a genitora subtratora (ou contra o genitor subtrator)”. No entanto, afirma que “a mera 'suspeita' de violência doméstica em país estrangeiro” não é suficiente. “Essa seria, na realidade, uma interpretação em desconformidade com a Constituição Federal”, diz o texto.
Não há data de julgamento do tema no plenário do Supremo.
A BBC News Brasil teve acesso a levantamento da AGU que mostra que das 173 ações sobre subtração internacional de crianças que chegaram à instituição nos últimos seis anos, aproximadamente metade envolveu alegação de violência doméstica. O reconhecimento judicial da violência, no entanto, só aconteceu em uma em cada cinco dessas ações.
A AGU não detalhou a proporção do gênero das pessoas nessas ações, mas disse que “no geral, as mães são as principais vítimas desse tipo de violência”.
Considerando todas as ações levadas à Justiça desde 2018 (em andamento e encerradas), os Estados que mais recebem crianças subtraídas de outros países foram: São Paulo (45 casos), Rio de Janeiro (20), Paraná (15), Minas Gerais (13) e Santa Catarina (12), segundo a AGU.
A seguir, entenda quais são as regras internacionais existentes para os casos de subtração internacional de crianças e o que está em jogo para crianças e famílias em situações que envolvem violência doméstica.
Quando uma criança é levada sem consentimento de um dos genitores (ou responsáveis legais) do país onde ela costuma viver, acontece o que se chama de subtração internacional – uma prática ilegal.
Esse conceito está na Convenção de Haia de 1980 sobre os Aspectos Civis do Subtração Internacional de Crianças e na Convenção Interamericana de 1989 sobre a Restituição Internacional de Menores.
Os tratados buscam proteger as crianças que passam por situações de ruptura familiar e que são deslocadas de forma repentina para outro país. As previsões valem até que a criança ou adolescente complete 16 anos.
De forma geral, o objetivo da Convenção de Haia é que os países colaborem para que as crianças possam voltar de forma imediata e segura ao país onde ela está acostumada a viver.
Vale destacar que essa discussão não tem a ver com nacionalidade ou cidadania da criança, mas ao país de moradia, a chamada residência habitual.
O decreto que promulgou a Convenção de Haia no Brasil, no ano 2000, usa o termo “sequestro” para se referir ao que hoje advogados da área e o governo chamam de subtração.
Especialistas ouvidos pela reportagem condenam o uso do termo, assim como o Ministério da Justiça.
A coordenadora-geral de Adoção e Subtração Internacional de Crianças e Adolescentes do Ministério da Justiça, Michelle Najara, diz que, considerando a legislação brasileira, trata-se de um erro de tradução no decreto (em inglês, o termo usado é child abduction, ou rapto de criança, numa tradução literal).
“Sequestro é um crime gravíssimo, e a subtração, no Brasil, tem efeitos apenas civis”, diz Najara à BBC News Brasil.
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Supremo vai julgar Ação Direita de Inconstitucionalidade relacionada à subtração internacional de crianças
O país que tem mais pedidos ao Brasil para o retorno de crianças é os Estados Unidos, segundo levantamento feito pelo Ministério da Justiça a pedido da BBC News Brasil. São 18 pedidos em aberto nos EUA, que também é o país que recebe maior migração de brasileiros.
Em seguida, aparecem Portugal (17), Argentina (7), Venezuela (7) e Paraguai (5), segundo dados de julho de 2024.
Como funcionam esses pedidos e o que o governo brasileiro tem a ver com a disputa entre os pais ou familiares?
Em cada país, as chamadas autoridades centrais são responsáveis por enviar os pedidos de cooperação jurídica internacional para o retorno de crianças que tenham sido subtraídas de seu país de residência habitual.
No Brasil, a Autoridade Central Administrativa Federal (Acaf) é vinculada ao Ministério da Justiça.
Quando esse órgão recebe pedido de outros países para devolver crianças que estão no Brasil, ele é responsável por verificar se estão presentes os requisitos.
Najara, que chefia a Acaf, diz que o órgão se esforça para, quando possível, resolver os casos de forma administrativa. Se não há acordo, a Acaf encaminha o caso à AGU, que é responsável por ajuizar a ação de subtração internacional de menores na Justiça Federal.
É comum que a AGU seja vista, nesses casos, como a defesa do genitor que foi deixado em outro país. No entanto, o procurador nacional da União de Assuntos Internacionais da AGU, Boni de Moraes Soares, diz que o papel da AGU é atuar em nome da União e não do genitor abandonado.
“O importante é exercer a nossa obrigação para com os demais países que são parte do tratado – seja para devolver a criança, seja para aquela criança fique aqui”, diz, em referência aos dois possíveis desfechos.
A convenção é uma via de mão-dupla. No caso de crianças levadas irregularmente do Brasil para outros países, a Acaf encaminha pedido de retorno às autoridades estrangeiras.
“A convenção é necessária porque ela vai ajudar a fazer com que crianças retornem para o Brasil através dessa cooperação direta. Se não houvesse a convenção, esses pedidos passariam por embaixadas, seriam pedidos diplomáticos, e os pedidos diplomáticos são feitos e atendidos com base na voluntariedade – o país pode ou não querer”, diz Najara.
Najara defende, no entanto, que a convenção “tem que se adaptar à realidade brasileira” e precisa de atualizações.
“Não se pode tentar aplicar uma convenção considerando uma realidade de 40 anos atrás, em que não se discutia sobre violência doméstica, em que os Estados não tinham proteção para isso”, diz ela.
Em discussões internacionais, autoridades brasileiras e representantes da sociedade civil vêm defendendo que a violência doméstica seja uma exceção na regra de devolução das crianças aos países de residência habitual.
“A gente ainda tem uma resistência muito grande de vários países onde ainda é normalizada a questão da violência doméstica”, disse Najara.
Evitando citar exemplos de países, ela diz que alguns “entendem que a negativa de retornar a criança só se justifica se a violência doméstica for dirigida contra criança e não contra a mãe”.
O ponto de discussão aqui – citado também na ação que será julgada pelo Supremo – é o trecho da convenção que prevê as exceções à obrigação de devolver as crianças. Ele não menciona diretamente o termo violência doméstica.
Trecho do artigo 13 da Convenção de Haia diz que um país não é obrigado a devolver uma criança quando “existe um risco grave de a criança, no seu retorno, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável”.
Os termos da convenção são “genéricos”, como aponta Najara. Ela diz que “convenção internacional multilateral precisa ter esses termos genéricos, para possibilitar que os estados adaptem a aplicação dessa convenção às suas jurisdições” e defende uma “releitura da convenção”.
“No Brasil, a gente tem uma lei forte contra a violência doméstica. O que a gente defende é que esses casos devem ser analisados à luz da nossa própria lei, e não à luz do ordenamento da Alemanha”, exemplifica. “A gente precisa interpretar a convenção conforme o nosso ordenamento jurídico.”
O procurador Boni de Moraes Soares diz que a interpretação de que a violência doméstica é uma hipótese de exceção do retorno das crianças é “mais contemporânea”.
“A convenção não foi negociada e não foi celebrada pensando em violência doméstica. A violência doméstica não era assunto na década de 80 ou na década de 70, quando o tratado foi negociado. Não se falava sobre isso, não havia conscientização política e social para enfrentamento da violência doméstica. Hoje somos obrigados a interpretar o tratado à luz da sociedade atual, que não tolera mais violência doméstica”, afirmou à BBC News Brasil.
Tanto a AGU quanto o Ministério da Justiça reconhecem que os processos demoram anos para serem resolvidos, enquanto a convenção estabelece que os países devem resolver a situação em até seis semanas.
O relatório encaminhado pela Presidência ao STF neste mês menciona que a União já tem defendido, em diferentes ocasiões, que sejam considerados exceções os “casos em que se comprova a perpetração de violência do genitor contra a mãe que gere impacto na vida da criança, ainda que tal previsão originalmente se circunscrevesse a casos de violência contra o menor”.
A ONG Revibra Europa, que oferece suporte e assistência gratuitos para mulheres migrantes que são vítimas de violência doméstica, defende que a abordagem da Convenção de Haia “focada puramente no retorno é retrógrada”.
“O texto do tratado nunca nomeou violência doméstica como exceção à regra do retorno, e também não foi alterado para acomodar a evolução sobre o entendimento do tema nas últimas décadas. Mais de 40 anos depois, não existe ainda nenhuma modificação às exceções que considere o pai como agressor da célula familiar e como isso caracteriza risco à vida de um infante”, diz a organização.
A Revibra afirma, ainda, que “para proteger a criança do dano potencial, quando a mãe é vítima de violência doméstica, é preciso entender que ela é juntamente vítima, quando é objetificada como instrumento de vingança no contexto do término de um relacionamento marcado por violência doméstica”.
Na prática, além da dificuldade para provar alguns tipos de violência, um fator que agrava a situação de mulheres migrantes em situação de violência é a dependência do parceiro, diz à BBC News Brasil Juliana Wahlgren, diretora fundadora da Revibra e especialista em Direito Internacional Público e Privado e Direito Europeu.
“A maioria dessas pessoas tem algum tipo de dependência do estatuto migratório com o agressor, com o pai — dependência de visto, dependência financeira”, disse.
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Quando mãe é vítima de violência doméstica, a criança também é vítima, defende ONG
O Itamaraty não deu entrevista sobre a subtração internacional de crianças, mas informou que, nesses casos, o Ministério das Relações Exteriores é responsável pelos serviços de assistência consular no exterior, que podem ser consultados neste link.
O ministério disponibilizou uma cartilha que fala dos “riscos de natureza legal da decisão de se mudar de volta para o Brasil com menores, sem o consentimento do pai ou responsável pela criança”.
O material foi feito em colaboração com o Ministério da Justiça e a ONG Revibra Europa.
A cartilha alerta, por exemplo, para o fato de a retirada das crianças ser considerada crime em alguns países, o que pode levar a um pedido de prisão do genitor acusado de subtrair a criança.
Também orienta que a mãe vítima de violência doméstica reúna o maior número de provas do abuso sofrido e sugere que sejam reportados, “na medida do possível”, às autoridades locais, antes da decisão de deixar o país.
Entre as provas que podem ser consideradas, segundo a cartilha, estão laudos médicos, relatos para organizações estatais de apoio às vítimas de violência doméstica, notificações e denúncias para a polícia.
A sugestão é que as denúncias sejam preferencialmente feitas na companhia de uma pessoa de confiança, com conhecimento da língua e cultura locais.
Em situação de emergência, a recomendação é chamar a polícia ou ambulância.