Todos os dias, o mesmo ritual: George Pereira, 51 anos, morador da Vila Cauhy e um dos atingidos na enchente de janeiro, atravessa o Córrego Riacho Fundo diariamente com a água batendo na altura dos joelhos para poder ir trabalhar. A comunidade ainda sofre os impactos da inundação, principalmente com a queda da ponte Liverpool, uma das três passagens que ligava o Núcleo Bandeirante à região, arrastada pela força da correnteza.
A nova ponte ainda não foi instalada, mas a previsão, segundo a administração do Núcleo Bandeirante, é que a passarela seja colocada até o fim do mês, para que os moradores da região possam fazer a travessia entre as duas cidades com segurança.
Neste mês de junho, completa seis meses da maior enchente já registrada na Vila Cauhy. As fortes chuvas nos primeiros dias do ano elevaram o nível do corpo d’água em mais de dois metros, invadindo ao menos 60 casas. Apesar de defender que a ponte já deveria ter sido colocada no local, George reconhece que o trabalho tem sido feito todos os dias para a reestruturação da travessia.
“É muito difícil passar por aqui à noite, muito arriscado. Passamos por essa dificuldade porque a ponte não foi construída ainda. Estamos com pressa para que a gente possa passar aqui com mais dignidade. A gente necessita dessa ponte, temos que agir rápido porque as pessoas estão com dificuldade para passar aqui, tendo que arrodear para poder atravessar [para o outro lado]”, destacou.
Os moradores da Vila Cauhy avaliam que o governo fez avanços de infraestrutura para evitar novas inundações, mas anseiam pela chegada da ponte. Muito utilizada pela comunidade anteriormente, sem ela, a solução encontrada para ir e retornar do trabalho para muitos foi atravessar o córrego a pé diariamente, pisando sobre as pedras com o risco de cortar o pé ou pegar infecções, já que a água do córrego é poluída e é possível notar um leve cheiro de esgoto.
O Governo do Distrito Federal (GDF) realiza obras para alargar as margens do córrego e construiu boa parte dos muros de gabiões — grandes blocos de arame preenchidos com pedras — para evitar deslizamentos, uma vez que a área também era considerada como de risco de erosão. A intenção é manter o volume de água dentro dos limites do córrego mesmo em caso de chuvas intensas.
Outro morador da região que faz o mesmo trajeto é Marcondes Lopes, que trabalha com obras e precisa sair cedo de casa para o serviço. Ele retorna no fim do dia, no crepúsculo, e realiza o mesmo ritual: tira as botas e a meia do trabalho, sobe a barra da calça até o joelho e começa a caminhar no córrego até o outro lado. “Assim fica mais perto”, comentou. “Pego esse atalho aqui para não precisar fazer o arrodeio todo.”
“A obra está muito devagar. Precisa ir mais rápido para melhorar para nós. Atravessar aqui é ruim porque pisamos nessas pedras aqui e corre o risco de cortar os pés”, disse. Marcondes acredita que as obras ajudarão a segurar a força da correnteza em uma eventual nova cheia do Córrego Riacho Fundo durante a temporada de chuvas.
Lucelma da Silva, 44, avalia que a obra aparenta estar muito boa, com uma estrutura de pedras resistente, mas também acredita que está demorando. Ela faz a travessia no córrego enquanto a ponte não é colocada porque a residência fica perto do local, segundo contou.
“Chegando em casa tem que lavar porque tem rato e esgoto passando aqui pelo córrego. Eu sei que é um risco para mim e para quem passa, mas a gente arrisca”, finalizou.
A obra está sendo feita pela Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap) sob supervisão da administração do Núcleo Bandeirante. Procurada pelo J Br , a administração informou que a previsão é que a nova ponte seja instalada ainda no fim deste mês. A estrutura reforçada com ferro maciço já está ao lado do local e deve ser colocada após o término da instalação dos gabiões, que já está em fase final.
De acordo com o administrador Cláudio Márcio de Oliveira, a obra com os muros de gabiões é necessária para que a ponte possa ser colocada. Foi preciso firmar a estrutura para garantir que a ponte pudesse ser suportada com segurança. Foram mais de R$ 2 milhões investidos para a construção dos muros de gabiões e a instalação da nova ponte.
“Ainda serão construídos mais 80 metros de gabiões para proteger essa nova passagem. A principal função deles é evitar o assoreamento, mas o governo está trabalhando com a limpeza do córrego desde o Lago Paranoá, onde ele deságua, para dar mais vazão ao fluxo de água”, destacou Márcio. Com a limpeza do corpo d’água, menores as chances de lixo e entulhos atrapalharem ou entupirem o escoamento da água.
De acordo com ele, já foram encontrados lixos de entulho e também muitos itens como sofás, geladeiras, entre outros móveis, que também atrapalham a vazão do c ó r r e g o.
“Estamos trabalhando para colocar o mais rápido possível aquela passarela. A gente sabe que tem um fluxo muito grande de pedestres ali, o governo sabe que é importante aquela passagem. Mas estamos fazendo todo um trabalho estrutural para que seja uma ponte definitiva, por isso um pouco mais de demora”, afirmou o administrador. A intenção é que a ponte dure a longo prazo, segundo ele.
Uma ponte provisória não seria possível neste momento em razão do fluxo das máquinas, o que impediria tanto as obras quanto a passagem dos pedestres. Durante este período, a administração informou que foi implementada uma nova linha de ônibus para atender a Vila Cauhy. A linha 0.164 realiza o percurso do Terminal do Núcleo Bandeirante até a cidade, passando pela Avenida Central e 3ª Av e n i d a .
Lucilene dos Santos, 41, mora na Vila Cauhy há oito anos e atualmente vive próximo à margem do córrego. Quando ele transbordou, a dona de casa lembra que as águas "faziam onda dentro de casa" e tudo ficou molhado.
"Molhou tudo. No outro dia teve um barulho muito forte, que, quando vimos, era a ponte caindo", afirmou. "Para mim foi uma derrota. Queimou máquina de lavar, fogão, o colchão mofou e outras coisas estragaram."
Até o momento sem a ponte, o trajeto até o colégio dos filhos ficou mais demorado. É preciso dar a volta pelo outro lado da Vila e entrar no Núcleo Bandeirante por fora. Apesar de gostar da Vila Cauhy, em razão do que aconteceu em janeiro, ela não quer mais morar ali.
"Isso aqui não é vida. Eu adoro aqui, mas bem perto do córrego é perigoso. Quando chove, a gente não dorme. Toda hora a gente abre a janela para ver se está subindo a água", destacou. Ao longo dos seis meses, ela conseguiu comprar um fogão e uma máquina de lavar, mas alguns armário ficaram enferrujados. Ela perdeu algumas roupas, mas recebeu dooações.
Lucas Lima, 26, mora próximo à primeira ponte da Vila Cauhy, e está na comunidade há 24 anos. De acordo com ele, os últimos seis meses foram de muito trabalho para conseguir recuperar parte daquilo que foi perdido após as enchentes. De acordo com ele, o maior prejuízo foi com os móveis e com as roupas, uma vez que alguns precisaram ser descartados em razão do estado que ficaram após a enchente, que carregou muita lama.
As doações fizeram toda a diferença para Lucas e a mãe. Eles ganharam um sofá e um colchão de um amigo e as outras doações foram principalmente de cestas básicas e roupas, que ajudaram muito a família do motoboy. A expectativa para os próximos meses é continuar trabalhando para poder voltar à normalidade. “Trabalhar para ver se conseguimos voltar a ser como antes, ter a casa bem mobiliada. Vamos correr atrás. E se a obra passar segurança, vamos poder dormir mais tranquilos”, relatou.