A professora e pesquisadora Eneá de Stutz será a única brasileira a participar como palestrante e debatedora do evento sobre justiça de transição — que são políticas de enfrentamento e reparação dos atos de uma ditadura — num evento do Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU, que ocorrerá em Bogotá, na Colômbia, ainda neste mês.
Eneá é presidente da Comissão de Anistia do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, mas o convite é derivado de sua produção acadêmica e experiência nessa área. A pesquisadora coordena o Programa de Pós-Graduação em Direito, vinculado ao curso de Direito na UnB. O tema da reunião na Colômbia será “As lições aprendidas e as boas práticas da justiça de transição no contexto da paz e desenvolvimento sustentáveis”. Trata-se de um debate regional para a América Latina e Caribe, que ocorre entre os dias 20 e 22 deste mês. Deste encontro, sairá um relatório a ser apresentado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, em março de 2025.
A professora é autora do livro A transição brasileira: memória, verdade, reparação e justiça (1979-2021), que trata da Lei de Anistia Política, de 1979, até os tempos atuais. Essa lei foi decretada ainda na ditadura, no início da chamada “transição lenta e gradual”, e permitiu o retorno dos exilados e a libertação de presos políticos, mas, também, resguardou de punição os agentes do Estado que cometeram violações e crimes, como tortura, morte e desaparecimentos dos opositores do regime. O trabalho da Comissão de Anistia, que preside, está presente na sua publicação. Eneá de Stutz tem o entendimento que a negação da ditadura, como foi propagado no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, gerou o 8 de janeiro de 2023.
A pesquisadora é crítica da falta de punição para os militares que perpetraram todos esses crimes. E pontua que a Lei de Anistia surgiu num período de censura aos meios de comunicação e da ainda existência de graves violações de direitos humanos, negadas pelos governantes da época. “O silêncio era permanentemente imposto a toda a sociedade brasileira e não havia sequer debate público sobre a ditadura, quanto mais sobre como sair dela. Talvez este ambiente tenha sido suficiente para criar uma ilusão de que a Lei 6.683/79 (Lei da Anistia) foi uma lei de esquecimento, de apagamento dos fatos. Talvez tenha mesmo sido a intenção tanto das autoridades quanto dos parlamentares ao votá-la”, registra Eneá no livro.
“Em síntese, o entendimento político em 1979 era de criar uma lei que apagasse os fatos havidos antes de sua promulgação, o que impediria qualquer tentativa de reparação, memória ou verdade sobre o período. Com a compreensão de que o que aconteceu no Brasil no período entre 1964 e 1979 não pode ser lembrado, reparado ou responsabilizado, porque foi esquecido. Os fatos teriam sido apagados”, complementa a autora.
Em conversa com o Correio, Eneá de Stutz se diz honrada com o convite, no momento dos 60 anos do golpe no Brasil. “É importante não só lembrarmos tudo que ocorreu no país como também finalizarmos nossa tarefa constitucional”, disse. Uma dessas tarefas é encerrar o julgamento dos cerca de quatro mil processos pendentes na Comissão de Anistia até 2026.